top of page

A genealogia de um torcedor

  • Foto do escritor: Manoel Costa
    Manoel Costa
  • 31 de dez. de 2024
  • 3 min de leitura

Atualizado: 19 de mai.

O primeiro contato, diz meu pai, foi com uma bola de capotão do Santos, que trazia junto consigo todo um uniforme do alvinegro praiano: camiseta, bermuda, meião, chuteira e até mesmo um bonezinho. Tinha também um ônibus de madeira de quase um metro, temático do Santos, com uma enorme baleia estampada nas laterais. Meu velho pai dizia que eu chutava a bola no muro chapiscado do quintal, sem grandes pretensões, só chutava com a maior força possível. Ostentando meu uniforme santista, corria pela grama com o ônibus, o jogando contra a parede da casa e gastando suas pobres rodas no chão de pedra. O Santos não teve vida fácil em minhas mãos. 

Mais velho, já sem o uniforme e muito menos qualquer resquício do falecido ônibus santista, eu agora tinha outro interesse, também alvinegro. Subi a serra paulista e desembarquei no Parque São Jorge, na terra de guerreiros, loucos e sofredores. Meu pai, o seu Zé, justificava a sua falha como uma fatalidade oriunda daquele período final dos anos 90 e início de 2000. “Naquela época o Santos não saía nem em jornal policial!”, se lamentava quando afrontado pelo fato de seu único filho não herdar seu amor pelo time litorâneo. E mais: torcer para um rival.

invasão corinthiana
Foto: Arquivo Placar

Como se percebe que é torcedor de um time? Quando, de fato, podemos identificar a nossa adesão a determinado clube? É um contrato de paixão, moral e fidelidade que assinamos, prometendo estar presentes até o fim da vida, seja na vitória ou na derrota? Imaginemos um sujeito que em determinado ponto se identifica com tal clube e passa a acompanhar, vibrar, torcer, sofrer e chorar. Há um ponto de passagem que demarca a sua existência antes de ser torcedor (A. T.) e depois de se tornar um (D. T.)? Se isso existe, não sei dizer, mas ocorreu um evento em minha infância que serviu como ponto de passagem de um mero simpatizante, para um verdadeiro sofredor corinthiano. 

O ano era 2002, o último Brasileirão de mata-mata. Na altura dos meus 8 anos, já havia presenciado algumas conquistas, mas aquele Brasileirão foi diferente. Realmente acompanhei grande parte dos jogos e vi uma bela campanha do Timão, se classificando para as quartas de final em terceiro lugar da primeira fase. A primeira partida seria contra o Atlético-Mineiro, e foi um passeio, 6x2 na primeira partida em pleno Mineirão. Depois uma disputa dura contra o Fluminense, mas passamos. Na final, nos encontraríamos com o oitavo colocado da primeira fase, que eliminou o líder São Paulo com duas boas vitórias, e depois o Grêmio, com tranquilidade. O Santos tinha se encontrado nos pés de Diego e Robinho, mais um dos tantos meninos da vila, que teimam em brotar por aquelas bandas. Aquela final foi meu marco como verdadeiro torcedor.

O Santos, meu time prometido de infância, mas relegado em prol do Corinthians, minha verdadeira paixão. Os uniformes foram jogados fora, a bola estourou, e o ônibus foi destruído de tanta pancada. Atos simbólicos de uma criança que recusava o direcionamento do pai, destruindo qualquer esperança de um dia virar torcedor santista. Naquela final de 2002, estávamos frente a frente uma vez mais, e não seria a última. 

Os meninos da vila estavam impossíveis, venceram o primeiro jogo por 2x0, levando uma confortável vantagem para o jogo decisivo. Na partida de volta, sucumbimos novamente, 3x2 para o Santos, campeão brasileiro. Mas um acontecimento em especial marcou não apenas a mim, mas a todos os envolvidos naquela final. As pedaladas capitais de Robinho para cima do lateral Rogério. Cada pedalada equivalia a um dos passos que dei para longe das esperanças de meu pai. Foi um martírio corinthiano presenciar aquele interminável drible. 

Robinho pedalando para cima do lateral Rogério
Foto: Vidal Cavalcante/Estadão Conteúdo.

O Santos devolveu todos os maus tratos que lhe causei, mas também marcou definitivamente que seríamos rivais. A partir daquele momento, daquela derrota dolorida, fui marcado na alma como corinthiano. Não havia mais volta.


Comments


  • Spotify
  • Instagram

Chuto, Logo Existo ⓒ, 2025

bottom of page